07 setembro 2006

anestesia geral

Que revolta vazia, seca e desesperada. Não é o mundo, sou eu, que fico aqui parada, sentada em cadeira confortável, preocupada com as tarefas do dia e com as coisas que estão dentro de mim. Sempre olhei muito para dentro. E de que vale isso? O que muda sentir pena. O que muda perceber que está tudo errado? Se continuo juntando dinheiro para comprar aquele vestido de duzentos reais que vi ontem em uma vitrine. Sou egoísta, sempre fui. E muita gente que conheço também é. E talvez seja por isso que tem tanta gente morrendo enquanto escrevo essa carta para ninguém. Quando tentaram tapar nossas bocas há quarenta anos atrás ainda existiam pessoas que se revoltavam, a ponto de dar suas próprias vidas pela liberdade, para se fazer ouvir, por uma democracia, uma voz. E de que adiantou? As armas continuam apontadas para nossas bocas. E somos um bando de mudos egoístas. Covardes. Me vejo agora com um grito entalado na garganta. E me calo, como vejo todos calarem. Não existe mais direita e esquerda, não existe mais centro. Não existe mais nada. Milhões de pessoas passam fome, morrem em hospitais sem auxilio, frutos podres de uma violência que se transformou em guerra civil. Todos sabem disso. Mas ninguém se revolta mais. Preferem se trancar por trás de grades em suas casas confortáveis. Com televisões de plasma que lhes mostram o que tem ali do lado de fora de seus quartos com ar condicionado. Se o mundo está queimando, isso não os atinge. Se pessoas morrem de fome, isso não os atinge também. E sem sentir nada assistem a telejornais na hora do jantar, comendo pratos quentes. Sem sentir nada. Sem sentir nada. Estamos todos anestesiados. Matar e morrer é normal. Viver no luxo enquanto outros vivem na merda é normal. Desviar dinheiro público é normal. Guerra é normal. Vou enlouquecer se continuar a fazer nada. E espero que todos enlouqueçam também. Que todos que estão parados sem fazer nada enlouqueçam. Que quem acha normal enlouqueça para perceber que não é – isso tudo não é normal. Vejo todos os dias pessoas precisando de ajuda e sendo maltratadas por isso. Como trato um negro pobre que se aproxima para pedir ajuda? E como ajudo? Eu ajudo? Trabalho e pago impostos. É isso o que eu faço para um mundo melhor. Compro papel reciclado. Dou esmola para quem vigia o meu carro. E pronto. Muito bem, mas não é suficiente. E muita gente sabe disso também. É só olhar o mundo e ver que é preciso mais. Quando entrei em uma favela pela primeira vez na minha vida tive a nítida impressão de que poderia ser eu ali, no lugar daquela moça com um monte de criancinhas remelentas e nuas penduradas em volta. Ela nasceu no mesmo dia que eu, na mesma hora. Mas me levaram de carro para uma casa na qual havia um berço a me esperar, enquanto ela nem tinha uma casa. E se fosse eu a não ter para onde ir? E se eu tivesse nascido e crescido naquela favela, quem eu seria hoje?

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